Doença da saudade
"Sofro da doença da saudade…" — ouvi há tempos de uma senhora de 86 anos. Tentei explicar-lhe que a saudade não era uma doença, mas depois da sua explicação, acabei por concordar com ela
Texto de
Bárbara Matias •
"Tenho saudades do tempo em que podia fazer tudo sozinha, em que sabia fazer tudo sozinha. Sobretudo, tenho saudades do tempo em que nunca estava sozinha. É uma doença que afecta principalmente as pessoas da minha idade. Tem cura, mas deve ser cara, porque ainda ninguém se curou dela! A viuvez é um dos sintomas, assim como o partir dos filhos para a cidade.
Os filhos por lá têm os netos e para cá pouco os trazem. Os que (ao contrário de mim) estão perto, ainda os ajudam a criar, mas depois a dor dobra. Perdem-se os filhos e os filhos dos filhos, que são nossos filhos a dobrar.
Vai-se piorando quando nos apercebemos de que eles só voltam no Natal e nos anos. E quando já se fizeram muitos (anos), nós deixamos de os contar e eles de se lembrar que os fizemos.
Depois, outras doenças, como a crise, entram na nossa casa e acabam por se alojar no nosso corpo.
O problema da crise é que ela entra em conflito com a medicação que até lá tomávamos e somos obrigados a parar. Ao parar os medicamentos, nós paramos.
Eu deixei de ir ver a Emília, que mora a duas casas da minha, que as pernas desistiram de se arrastar. Deixei de ver o Goucha e a Cristina, que a visão turvou. Deixei de me baixar para alimentar o bichano, que o chão fugia-me. Percebi, nessa altura, que a saudade atingira o seu pico.
Desde então, agarro-me às fotografias. Sei que pioram o meu estado, mas gosto de me lembrar de quem fui e do que tive. Não para quantificar o que perdi, mas para valorizar o que a vida me deu até aqui.
E estamos quase Natal, menina! O Natal está para a saudade como Agosto está para a crise. Acalmamos algo que vai voltar com mais força, quando já não temos forças para uma recaída. Triste é saber que, no final, vamos resistir a essa recaída e, ao resistir-lhe, resistimos mais um ano.
No meu caso, vou enganando a doença com mezinhas. Às vezes aparecem uns senhores de uma associação da terra cá em casa. Perguntam-me como estou, esperam para ouvir a resposta e sinto-me logo melhor. Mas à noite, à noite fico sozinha e a alma dói-me. O corpo não me preocupa. Escorre-me uma água salgada pelos olhos e isso, menina, isso já não me dói!"
Concordei. A saudade é uma doença dos nossos dias.
No comments:
Post a Comment